2024 oficialmente acabou. Agora os cariocas, que só vivemos de verdade entre dezembro e o carnaval – depois somos somente indivíduos ciosos de suas responsabilidades, quase uns paulistas, como diria Sérgio Porto -, só vamos operar em capacidade máxima em março.

Como sempre, esperei a Liga divulgar as gravações oficiais pra começar a ouvir os sambas do ano. Tirando Tuiuti e Beija-Flor – precisei dar uma olhada nos dois assim que saíram -, os sambas eram completos desconhecidos pra mim.

Antes de começar a falar sobre cada um, breves comentários sobre a safra e a gravação.

Eu gosto da safra 2025, um conjunto variado, que vai desde sambas descritivos e imensos – Imperatriz – ao oba oba – Vila. Os compositores seguem apostando em formatos variados – tem refrão seguido de refrão, falso refrão, samba sem refrão do meio -, o que é sempre bom sinal.

Já a gravação é ruim. Não que a qualidade técnica do CD seja aquém, mas todos os sambas são nivelados por baixo. Metade das faixas não tem nenhum diferencial, nenhum molho, e os sambas mais valentes não têm o peso que deveriam – um comentário que vai ser recorrente aqui. Ganham os sambas mais cadenciados, como os de Grande Rio e Mocidade – não atoa as melhores faixas do disco.

Aos sambas.

Viradouro. Minha primeira vontade foi chegar aqui e dizer que esse samba é um ROLO COMPRESSOR. A melodia é complexa, inovadora, une com rara felicidade trechos mais corridos e lentos. O refrão de cima, com o A chave do cativeiro/Virado no Exu Trunqueiro/Viradouro é Catimbó!/Viradouro é Catimbó!, é uma DELÍCIA, e ainda vem antecipado por um estribrilho que favorece o canto. O grande porém: a letra do samba é um negócio meio Grande Rio 2024 – hermética, de difícil compreensão; pra piorar, alguns trechos – tipo a entrada no Acenda tudo que for de acender – são muito difíceis de cantar. Ressalvas feitas: outra porrada das bandas de Niterói.

Imperatriz. Ai que saudade de um samba-lençol. Esse ano o Me Leva encarnou o melhor da União de Jacarepaguá no início do século e compôs um samba quilométrico. Não que isso seja ruim, mas os compositores erraram no “clima” da coisa: a melodia, que é mais pra baixo, não chega a ser pesadona, como um bom afro dos anos 80; também, claro, não chega a ser animada. É um lugar-nenhum indefinido, meio-termo entre Cabuçu 1983 e Império da Tijuca 1997, outros desfiles sobre o mesmo tema – e dois sambas, aliás, que eu amo. Gosto da emenda do refrão de cabeça com o início da primeira parte, uma boa solução. Já o início da segunda, Mas o dono do caminho não abranda, tem uma melodia tão requentada que dói. De positivo, a letra didática, ponto determinante prum enredo-história que tem início, meio e fim. Sobre a gravação, Pitty e Lolo muito contidos; faixa burocrática até dizer chega.

Grande Rio. A faixa do ano. A levada que o mestre Fafá imprime é BRINCADEIRA, e Evandro tá em fase exuberante. A melodia é uma delícia, cheia de boas variações. A letra é clara e evoca todas as imagens importantes pro enredo sem ser óbvia, ta-ti-bi-ta-ti. Difícil citar um trecho de destaque do samba, mas aquele E foi assim… Suas “espadas” têm as ervas da Jurema é ABSURDO. Golaço de Caxias.

Salgueiro. De início, parece que o samba é um MACUMBÃO no melhor estilo salgueirense, mas do nada começa a se falar de corisco e, quando vai ver, estamos em Lampião. O resultado é um meio termo entre amuletos e cultura popular – um negócio meio Jacarezinho 1979 – e curimba. A letra é bem-feita, inteligente, espirituosa sem ser brega; já a melodia é comum. Sobre a gravação, falta PRESSÃO, algo que esse samba pede. Falta aquele quê de malandro batuqueiro, de raça. De Salgueiro. A bateria tá muito burocrática, Igor Sorriso – que fez uma falta danada no carnaval do Rio – idem.

Portela. É minha maior decepção. Samba e gravação não são ruins, mas tudo é muito… Ok. É um aluno nota 7, passa de ano sem sustos, mas não tem a intransigência e descompromisso de um moleque nota 4 nem a genialidade de um aluno-modelo. Parece que os compositores tiveram tanto respeito pelo Milton que não quiseram correr o risco de ousar. Ninguém lembra de um aluno nota 7.

Vila Isabel. Quando a parada começa com EMBARQUE NESSE TREM DA ILUSÃO você sabe que o caldo vai entornar. O samba da Vila só não é um boi com abóbora clássico porque o refrão do meio é bom e aquela segunda parte – Quanto mais samba tocava, mais defunto aparecia – é muito inteligente. De resto, melodia comum e letra pavorosa, cheia de chavões e imagens terríveis – a batucada de vampiros me pegou legal.

(Mas, assim, melhor isso aqui que a petição de habeas corpus da Portela)

Mangueira. Mais um samba enorme nessa safra, mais uma vitória do Lequinho na Manga. Embora ela tenha alguns trechos duvidosos – aquele a moda é ser cria, por exemplo -, eu gosto da letra, especialmente na primeira parte. Gosto também dos dois falsos refrões em sequência, que além de serem bons em si, dão um dinamismo todo diferente pro samba. O que mais me incomoda na composição mangueirense é que em vários momentos a melodia não se resolve. Na primeira parte, por exemplo, parece que a todo momento os compositores pensavam em fechar a melodia e escalar prum refrão, mas desistiam e emendavam numa continuação, sem resolver o encaixe entre uma frase melódica e outra. Sobre a gravação: faz três anos que a gente ouve basicamente a mesma faixa da Mangueira no CD. Uma coisa é ter identidade, outra é ser repetitivo.

Beija-Flor. Simplesmente em negação com a aposentadoria do Neguinho. Enfim. O início do samba, Kaô meu velho!/Volta e me dá os caminhos/conduz outra vez meu destino/traz os ventos de Oyá, é de fazer qualquer nilopolitano chorar instantaneamente. A primeira parte como um todo é muito boa, já a segunda é um pouco aquém – aquele nossa jornada parece mensagem de RH. Sobre a gravação, o CD tirou muito do brio do samba que venceu a disputa. De novo, falta PRESSÃO.

Tuiuti. Que sambinha complicado. Em alguns momentos, seja em letra ou melodia, ele é genial. Por exemplo, o trecho A bruxa do conservador/O prazer e a dor/Fui pombogirar na Jurema, que emenda direto em Chama a Navalha, a da Praia e a Padilha, é MUITO BOM. Mas em outros o samba é lamentável. Cis tema é um trocadilho pavoroso, e Estou no cruzo da esquina é de um mau gosto terrível. Além disso, a melodia na meiuca da primeira parte é enjoada, arrastada. Enfim, muitas emoções.

Mocidade. A faixa da Grande Rio é minha favorita do disco, mas a MELHOR, tecnicamente falando, é a da Mocidade. Hoje, ninguém faz fonografia de carnaval como Zé Paulo e Mestre Dudu. O samba, que tem letra burocrática e melodia ok, ganha todo um charme, um tom saudoso. O início do refrão do meio – Se a Mocidade sonhar/No infinito escrever/Versos a luz do luar, deixa! – é muito bom, e aquele O céu vai clarear/Iluminar a zona oeste da cidade é de doer de tão bom. Destaque também, claro, pro trecho final do samba, a partir do Naveguei… Coisa de todo independente cantar chorando. No fim, o samba da Mocidade só comprova o que eu disse quando o enredo foi anunciado: tudo foi sempre sobre o retorno do Lage; o título e o fio condutor são só fachada.

Tijuca. O time pra lá de inusitado de compositores fez um bom samba, de boa letra e melodia tão competente quanto, com boas passagens. A participação da Anitta na faixa é boa e agrega na visibilidade do disco – embora aquele “prepara” antes do samba começar seja um abuso. O problema é que falta, de novo, PRESSÃO na faixa. Gravação muito burocrática.

UPM. Bruno Ribas foi no acesso buscar o boi e trouxe ele pro primeiro grupo. A escola ficou 53 anos longe do desfile principal e passou por poucas e boas no meio do caminho: chegou a ficar sem desfilar, frequentou a última divisão e só foi parar no grupo de acesso por conta daquele bem bolado que deu vida à Série A. Cinco vices depois – três com o Edson -, Padre Miguel conquista o merecido título e, em seu retorno, investe num enredo forte e bom samba – muito melhor do que os meramente funcionais que algumas escolas escolhem ao voltar pro especial. Gosto muito da subida no Toca o adarrum que meu orixá responde – que é seguido por Olorum, guia o boi vermelho seja onde for, trecho em que a letra foi jogada de qualquer jeito só pra caber na melodia. Bons presságios pra banda de Padre Miguel.

By Thales Basilio

Thales Basílio é editor e redator, formado em Relações Internacionais e Estudos Estratégicos pela UFF com pesquisa em carnaval carioca. Desde 2022 integra o time da Bicuda.

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