Enredo:
Um delírio de Carnaval na Maceió de Rás Gonguila
Presidente de Honra:
Anísio Abraão David
Presidente:
Almir Reis
Diretor de Carnaval:
Dudu Azevedo
Carnavalesco:
João Vitor Araújo
Pesquisador de Enredo:
Rodrigo Hilário
ARGUMENTO
O enredo da Beija-Flor para 2024 é sobre as nobrezas de Maceió, de Nilópolis e da Etiópia. Um encontro mágico de personagens reais, mas que nunca se viram, guiados pela luz dos encantados e da ancestralidade, com as cores, os ritmos e os pisados dos folguedos das Alagoas. Um delírio baseado na realidade, desafiando o espaço e o tempo, algo que só o Carnaval pode nos brindar.
Nossa história começa com as festas de Palmares e suas raízes nos cultos africanos e saberes indígenas. Marca de fé e resistência no maior dos quilombos, entranhadas nas tradições populares alagoanas, que têm o engraxate Benedito como um de seus brincantes mais ilustres. Parceiro de boêmios e damas da noite, o nobre folião das encruzilhadas passou a se chamar Rás Gonguila, a dizer que era, ele mesmo, descendente direto do último imperador da Etiópia.
Vamos mergulhar nos devaneios de Gonguila para contar como ele viu a corte de Haile Selassie embarcar numa jangada encantada para conhecer, do outro lado do mundo, os folguedos de uma terra de cores intensas, brisa mansa e mares quentes. Viajaremos no tempo e na mente do príncipe etíope dos carnavais alagoanos para mostrar o encontro dele com a Deusa da Passarela e seus soberanos.
Nessa celebração à beira-mar, veremos uma gente que pisa forte e canta alto para defender a nobreza da cultura popular. Bravos foliões de sangue alagoano, etíope e nilopolitano, que batem cabeça para os mestres do passado e repetem o gesto de Gonguila, ao vestir a fantasia da liberdade e da imaginação para se tornarem reis e rainhas na corte do Rei Momo.
Vem todo mundo para esta festa, pois os bons ventos delirantes vão guiar jangadas e pássaros encantados, a flutuar pelos mares e ares rumo Maceió – e a um belíssimo desfile na Marquês de Sapucaí!
Nilópolis | Maio de 2023
SINOPSE
Quem será o Benedito?
Nasceu em Maceió, no ano de 1905, um menino chamado Benedito, sobrenome dos Santos. Veio ao mundo numa rua que não existe mais, numa parte da cidade com cheiro de magia e maresia, entre as Igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito. Pouco se sabe sobre seu pai e sua mãe. Seus nomes e suas memórias viraram cinzas. A única certeza que se tem sobre eles é que sofreram na alma o horror da escravidão. Libertos e analfabetos, ganhavam o pão vendendo frutas nas ruas da velha cidade ou limpando os palacetes dos barões do açúcar.
Ao pé do ouvido do moleque, sussurravam histórias encantadas de antepassados que eram reis e rainhas em um país africano, a distante Etiópia, e que desfilavam sua realeza lá pelos altos da Serra da Barriga. A tradição que atravessou gerações levava Benedito de volta ao tempo de Palmares, o maior dos quilombos, cujo sangue nobre ainda corre nas veias das Alagoas. Tempo de dor e luta, mas também de resistência e celebração, quando Benedito ouvia dos pais: “Meu filho, dia de festa era dia de descansar as armas”.
Abaixa teu escudo, guerreiro quilombola. Repousa tua flecha, bravo caeté-wassu. Que hoje dançaremos com os espíritos dos nossos ancestrais em pajelanças caboclas, crenças do catolicismo popular e rituais da Mãe África! É dia de fazer nossos cantos e tambores ressoarem pela eternidade! Assim, sob a proteção de gameleiras e juremas, aqueles que resistiram ao açoite e não dobraram os joelhos deram origem a um povo que brinca sem perder a fé nas suas raízes.
É ele que manda na folia de Maceió
Antes mesmo de Benedito nascer, a Abissínia – nome antigo da Etiópia – já inspirava festas e cortejos no centro de Maceió, região que os jornais da época chamavam de Maceyobissínia. Era um pedaço de África na capital das Alagoas, onde os moleques passavam o tempo pelas ruas ensolaradas. Quando não rodavam direito o pião, e ele tombava no chão, diziam que era uma ‘gonga’. A falta de traquejo de Benedito com o brinquedo de madeira e o barbante de algodão deu a ele o apelido de Gonguila.
Aprendeu o ofício de engraxate e sua lida era na ponta da flanela. Gastava prosa nas calçadas, a lustrar sapatos de políticos, artistas e intelectuais na porta dos cafés e tabacarias. Mas era entre bêbados, meretrizes e desocupados que mais gostava de estar, entre goles e cigarros, carteados e sinucas. Pois foi na boêmia e nas encruzilhadas que Gonguila lapidou seu maior talento: ser folião. Um devotado súdito de Momo, líder do Cavaleiro dos Montes, bloco que fez história nos carnavais da capital, com nome inspirado nas dunas de areia da Praia do Jaraguá.
Naquele tempo, Maceió fervia entre o Sábado de Zé Pereira e as cinzas da Quarta-feira. Debaixo de um sol de brasa, a única nuvem era de confete e serpentina. Em seus conversíveis, almofadinhas e madames se divertiam nos corsos, enquanto a massa trançava as pernas no passo do frevo, importado do vizinho Pernambuco. Nas batalhas de orquestras que arrastavam multidões, vencia a que soprasse mais alto seus metais. E tome cerveja gelada para esfriar a goela e lapada de cachaça para incendiar o povo de novo!
Gonguila descia do Farol ao cais do porto e seguia até a Ponta Grossa – onde até hoje moram seus descendentes. Alto e forte, tocava clarim pelo trajeto, sempre ao lado do estandarte do bloco, todo de veludo e ornamentos dourados, com a imagem de um ginete montado num alazão. Aqui e acolá, um brincante espetava algum tostão com alfinete no pano do estandarte. Dava pelo menos para pagar os músicos e alguma bebida. Depois do desfile, virava porteiro da Fênix Alagoana, o clube dos ricos, que se embriagavam de lança-perfume nos luxuosos salões.
Um dia, faltava pouco para o Carnaval, Gonguila ouviu a notícia: bem longe dali, Rás Tafari – “príncipe respeitado” – era coroado imperador da Etiópia. Fechou os olhos e puxou na gaveta da memória as histórias dos nobres etíopes de Palmares. Entre o real e a fantasia, assumiu o parentesco com o monarca, botou um Rás na frente do apelido de infância e transformou-se em Rás Gonguila. Testemunhou a coroação do imperador e profetizou: um dia, ainda haveria de ver o encontro encantado das realezas de Maceió, da Etiópia e de uma corte azul e branca, maravilhosa e soberana.
Imperador de estandarte na mão
Em sua profecia, Rás Gonguila quase caiu duro quando descobriu sua herança africana. Tudo começou há mais de 700 anos, quando um primo distante, descendente direto da Rainha de Sabá e do Rei Salomão, fundou o Império Etíope. Séculos depois, num truque do destino, Zawditu, a imperatriz do momento estava lá super de boa, na dela, quando adoeceu e foi desta para uma melhor. Rás Tafari, filho de um conselheiro do palácio, não nasceu para reinar, mas viu o trono cair no seu colo.
Na festa da coroação, coisa igual nunca se viu. Aquele que seria o último imperador da Etiópia escolheu o nome de Haile Selassie – “O Poder da Divina Trindade”. Etnias de várias partes vieram saudar Sua Majestade Imperial, cada uma com seus trajes e adornos de festa: flores na cabeça, barro nos cabelos, pintura no corpo, joias de madeira e miçangas. Vieram também cristãos das cidades de Lalibela, onde Jesus e Maria são pretos, e de Gondar, com seu colorido festival Timkat. De presente, toda sorte de panos de estamparia, cestos, sementes, ossos e chifres de exóticos animais.
Depois de sete dias e sete noites de música, dança e banquetes, estava coroado o novo Leão de Judá. Rás Gonguila viu com seus próprios olhos quando ele saiu do palácio empunhando o estandarte imperial, de manto vermelho sangue, cetro de marfim e espada de ouro cravejada de pedras preciosas. Subiu com a imperatriz Menen em uma carruagem puxada por zebras e antílopes. Atrás deles, um cortejo alucinante de brincantes etíopes. Gonguila achou até que parecia um grande bloco de rua, rumo à jangada encantada que partiria com destino a Maceió.
De sangue azul, nilopolitano
Gonguila mergulha ainda mais fundo nos seus devaneios e convida o povo da Mirandela a participar da festa. De ori consagrado a Iemanjá e protegido por Ogum, essa gente soberana que exalta a própria nobreza com samba no pé. Tem sido assim desde os tempos dos blocos Centenário e Irineu Perna de Pau, que pavimentaram o caminho vitorioso do Beija-Flor. Em seu sonho, o Rás alagoano viu a corte nilopolitana flutuando no cais do porto de sua querida Maceió.
Pois chegou o grande dia! Batuqueiros, é hora de esticar o couro dos tambores. Velha guarda alinhada com chapéu de fita azul e branca. Passistas com bicolor e sandália de prata no pé. Baiana ajeitando a saia antes de girar na imensidão do asfalto. Acerta o passo, nobre mestre-sala, e desfralda o pavilhão, guardiã do nosso maior tesouro. Olha a Beija-Flor aí, gente, mostrando que essa escola nasceu para vencer e, cá entre nós, sempre foi chegada a viajar na imaginação.
Caiu dos olhos dos nossos ancestrais uma lágrima de saudade, lembrando o velho tempo que passou. Brincando com a imaginação, hoje seremos fantasia, um lindo beija-flor anunciando uma delirante viagem carnavalesca rumo às Alagoas. Tirem do passado a nobreza, joguem fora a roupa do dia a dia e vistam-se de reis e rainhas, como Gonguila e Selassie, que é o que vocês são!
Sobe todo mundo nesse pássaro encantado, pois os bons ventos vão nos guiar pelos ares rumo àquele pedacinho de Brasil.
Rei dos brincantes
Lá vem jangada com nobres da Etiópia singrando o mar. Lá vem Beija-flor e sua corte nilopolitana batendo as asas e soprando os ventos. No cais enfeitado de cor, Gonguila os espera ao som do frevo e balé de estandartes. E o povo nas ruas de Maceió regendo o apito dos mestres, que brincam folguedos em todos os cantos de Alagoas e abrem a sede* desta grande festa da ancestralidade.
Tem chegança e fandango de marujos. Samba de matuto dos canaviais e coco de roda da beira da praia. Bumba-meu-boi e mascarados; pastoril, caboclinhos e papangus. Cambindas e taieiras de saias rodadas. Toré dos caetés-wassu, quilombo dos cativos e maracatus – antes perseguidos, mas que hoje podem rezar bem alto o seu xangô.
E tem guerreiro, com suas cabeças de catedrais e mantos de fitas, o mais querido dos folguedos, que sintetiza a alma dos alagoanos: povo de olhar e palavras doces como o mel da cana, abraço quente como o sol e gingado manso como o balançar da palha do coco e da cana. Gente que celebra de noite e de dia, na proteção de Nossa Senhora do Rosário e dos encantados, de São Benedito e dos orixás, com a fé tecida nas tramas de rendas e bordados.
Está cumprida a profecia do encontro de realezas, que hoje coroam Gonguila, imperador do Carnaval de Maceió. É o triunfo da cultura popular, em um esfuziante banho à fantasia nas águas de infinitos azuis. Neste congraçamento, todo mundo é rei e rainha. Basta se deixar levar por um delírio de Carnaval.
* Abrir a sede (lê-se séde) é como os alagoanos chamam o início das apresentações de seus folguedos, sempre com um canto puxado pelo mestre dos brincantes. É abrir a gira, começar os trabalhos.
REFERÊNCIAS
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Agradecimentos especiais: Prefeitura de Maceió e Fórum de Cultura Popular e Artesanato de Alagoas (Focuarte).
Entrevistas realizadas em Alagoas: Lienete Marques do Nascimento e Silviany Domingues do Nascimento (descendentes de Rás Gonguila); Mestres e mestras do Folclore Alagoano: Ana Alves Ferreira (Pastoril Recordar é Viver/Maceió), Ana Paula Rocha Lins (Taieiras Nair da Bertina/São Miguel dos Campos), Edivar Vicente Feitosa (Guerreiro Treme Terra Pilarense/Pilar) e Lucimar Alves da Costa (Chegança Silva Jardim/Coqueiro Seco); João Victor Lemos Viana (jornalista e pesquisador); Edberto Ticianeli (jornalista e pesquisador); Cármen Lúcia Dantas (museóloga); Hildenia Oliveira (museóloga); Victor Sarmento (museólogo).